sábado, 31 de março de 2012

Conto "Ierusalein"

PRÓLOGO

            Meus olhos perscrutavam silenciosamente o interior das grossas muralhas que os sarracenos construíram ao redor da Cidade Santa. Eu queria ver o Getsêmani, a Gólgota ou algum pedaço da Via Crucis, mas minha alma inquieta deveria se contentar com a visão cálida do Monte das Oliveiras, e com o olhar impregnado de medo que me alvejava como flechas invisíveis atiradas de dentro de Jerusalém.
Eu era apenas um entre vinte mil homens. A maioria vinha da França, como eu, mas existiam outros entre nós. Eram castelhanos, aragoneses, boêmios, italianos, romanos, sicilianos, gregos, germanos, lombardos, nórdicos, ingleses, escoceses, irlandeses, saxônios, eslavos, navarros, bolonheses, romanos, húngaros e bizantinos. É possível ouvir todas as línguas da Europa em nosso acampamento. E todas elas parecem uma só, porque temos fome e sede, e o sol inclemente da Terra Santa parece ser sarraceno.
O sol nasce mais uma vez. Já não sei há quanto tempo estamos aqui. Sei que há alguns dias nos reunimos em uma procissão: um de nossos clérigos teve uma visão, e disse que as muralhas iriam cair como as de Jericó se todos nós nos reuníssemos ao meio dia em marcha ao redor da cidade. No dia seguinte nos juntamos em uma grande coluna, todos descalços, ao redor das muralhas de Jerusalém. Mas nós não temos um Josué conosco. As muralhas, agora mais que nunca, parecem que não irão cair. Deveria eu me repreender por perder a fé de um cruzado?
Mas eis que, atrás de mim, despertaram-me de meus devaneios. Era um cruzado, assim como eu, assim como todos nós. Mas aquele cruzado era diferente. Alto, forte, robusto e determinado, tinha no olhar uma nobreza reverente, e a barba esparsa e os cabelos de um castanho joviais tingiam seu rosto de uma esperança rara entre um exército desesperado. O nome dele era Baldwin, Baldwin de Boulogne. Seu nome estaria gravado para sempre nos anais da história. Mas não sabíamos disto.
Payens, - disse-me ele - Godefroy está chamando”.
Assenti com a cabeça, levantei-me, de onde estava, e passei a segui-lo pelo emaranhado tortuoso das tendas que formavam o nosso acampamento.
“O que há?” - Perguntei-lhe enquanto nos aproximávamos da maior tenda.
Embriaco de Génova está aqui. – Respondeu-me ele com um sorriso no rosto. – Temos alguma comida, Deus vai nos colocar dentro da Cidade Santa.”
A tenda que eu havia deixado vazia há algumas horas estava repleta. Todos os líderes cruzados haviam sido chamados, e eu, amigo e confidente de Godefroy de Bouillon, estava ali para ouvir.
O chão coberto por diversos tapetes sarracenos estava ocupado por homens dos mais diversos semblantes e sotaques. Não havia cadeiras, e todos voltaram o olhar para mim quando eu surgi. Alguns sorriram, outros se voltaram para si mesmos, enquanto outros me deram um olhar esnobe de repugno ou insignificância.
Um deles, então, assim que tomei meu lugar, ergueu-se. O rosto quadrado, as bochechas rechonchudas e o olhar ligeiro eram de Roberto da Normandia, o líder dos normandos. Ao lado dele estava um homem desconhecido, vestido com uma cota de malha fosca, permanecia sério, embora tivesse as feições finas de um homem da corte. Seu nariz era ligeiramente curvo, não tinha barba como meus companheiros. Sem dúvida era o Embriaco. Não havia qualquer cruzado tão bem cuidado em nosso exército. Roberto confirmou-o.
“Este é Gugliemo Embriaco de Génova. Temos comida novamente graças a ele”.
Então outro homem levantou-se, e este vestia-se com roupas muito simples e tinha uma longa barba que ocultava parcialmente seu rosto. Pedro Desiderius, o clérigo que tivera a visão da procissão, o nosso “Josué”.
“Vejam! Deus ouviu nossas preces!” Gritou ele.
“Silêncio!” – Retorquiu violentamente um dos outros líderes, este se vestia com mais pompa, em uma cota de malha prateada. Tinha cabelos de um louro escuro à altura dos ombros, e a barba mal cuidada, assim como o olhar nervoso, lhe conferiam a aparência de um homem insólito. Era Raymond de Toulouse.
“Permitam-me continuar, - continuo Roberto, o Normando – Embriaco é realmente um homem ardiloso! Além de mais homens para reforçar o nosso exército de fé, trouxe-nos um grande carregamento de madeira, que somado com o nosso espólio de madeira de Samaria irão nos proporcionar nosso triunfo. Ergueremos torres. Torres de madeira. Os sarracenos cairão como folhas secas ao vento. A Cidade Santa será liberta.”
Outro homem falou, então, dentre um grupo de homens que estava oculto, pouco importante, em um dos cantos da tenda onde todos utilizavam o brasão de Génova.
“Mesmo que para isso tivéssemos que desmantelar todos os nossos navios!” – Vociferou ele, enquanto o sarcasmo em sua voz era tão notável quanto o forte sotaque italiano.
Alguns segundos de silêncio permearam a tenda, por fim, o próprio Gugliemo, sereno e plácido, ficou de pé, enquanto Roberto se deixava sentar.
“Meus homens me questionaram, e muitos ainda me questionam”. – Disse ele enquanto perscrutava com o olhar os rostos famintos e apreensivos ao seu redor. Era uma figura particularmente imponente, talhada em um sotaque inconfundivelmente italiano e em suas duas mãos unidas à altura da barriga.
“Mas não estão errados. – Continuou. - Eles têm medo! Eu também tenho medo. Isto é natural. Nossos navios representavam a única chance de voltar para casa. Mas também representavam a nossa única chance de vitória! O que eu deveria escolher? Voltar para casa como um fracassado ou libertar a Terra Santa? E há como escolher aportar em Génova e deixar de lado o próprio Santo Sepulcro? A escolha foi óbvia. Saibam, meus irmãos, que nossa guerra pela Cidade de Cristo terá fim no próximo entardecer. E nós sairemos dela como vencedores. Deus nos colocará dentro do Cinturão de Jerusalém, é a vontade dEle!”.
A oratória italiana foi implacável.
Todos os líderes sob a tenda se ergueram e, em uníssono, declararam Amen! em um forte brado que ribombou pelas paredes da tenda e insuflou o coração de todos os cruzados.
A vitória já era nossa, e aquela noite nos consagraria como vencedores.
            Do acampamento milhares de salmos e cânticos se levantaram como fumaça e vapor em todas as línguas cristãs. As torres começaram a ser erguidas. E as muralhas ruíam no silêncio enquanto o povo de Jerusalém dormia com uma tranquilidade que não poderíamos ter, eles não podiam imaginar que levantávamos a sua derrota com martelos e pregos, eles não podiam imaginar que suas muralhas intransponíveis seriam nossas no dia seguinte.
            O próprio Embriaco se colocou entre os carpinteiros, e desde aquela noite passou a ser chamado de Testadimaglio, o Testa de Martelo, ao seu redor centenas de marteladas aos milhares, sob a sombra da noite e o calor de tochas. No centro do acampamento os capelães de nosso exército jejuavam e oravam em coro aos pés do cruzeiro dourado que Sua Santidade, o Papa, havia abençoado pessoalmente.
            E eu fazia o meu papel de escudeiro na tenda de Godefroy, vestindo-o com sua armadura de aço e afiando o gume de sua espada.
            O exército de Cristo se preparava para desposar a cidade sagrada, e a noite de núpcias, a noite da vitória, nunca fora tão esperada.
            A manhã raiou, e o sol inclemente para nós parecia suave. Nuvens silenciosas passavam por sobre a cidade, acalentando nosso suor e enchendo de medo os corações do povo de Jerusalém. As torres não eram tão altas como os minaretes dos templos sarracenos em Jerusalém, mas pareciam gigantes cheios de ódio e prontos para esfacelar uma centena de muralhas e uma infinidade de vidas.
            Godefroy se reuniu com todos os outros líderes para forjar as estratégias da batalha que iria começar logo. Durante algumas horas eu aguardei imóvel por seu retorno, com os olhos sobre os minaretes e as torres da cidade. Observava com amargor os rostos sarracenos enquanto sentia o sangue em minhas veias pulsar de excitação. Eu não queria matar. Mas eu queria entrar na Cidade Santa. Eu precisava me libertar de meus pecados. Um dos capelães havia me dito que o sangue dos “infiéis” lavaria minha alma. Ele estava errado. Mas eu não sabia disso, pelo menos ainda não sabia disso.
            “Hugues!” Gritou Godefroy assim que, finalmente, deixou a reunião.
            “Sim, meu senhor.” Respondi.
            “As investidas irão começar em breve. O cruzeiro já está em marcha, boa parte do exército também. As torres estão se movimentando. Uma delas será nossa. Está preparado? Temos que subir.”
            Então um arrepio tomou minha espinha. Toquei meu coração silencioso. Minha mão direita tocou minha espada pulsante. Montei meu cavalo e junto de Godefroy e Baldwin chegamos aos limites de Jerusalém e suas grossas muralhas.
            O exército entoava um salmo, enquanto o cruzeiro seguia para o coração da batalha. O cheiro de mirra e incenso impregnava o ar, assim como o suor forte de nossos soldados. As lâminas também suavam. Eu tremia.
            Dez torres se moviam ruidosamente, todas elas se concentrariam na face oriental de Jerusalém. Tomaríamos as muralhas, abriríamos os portões e a cavalaria libertaria a cidade.
            Cavalgamos por alguns minutos até chegar à base da muralha. Desmontei de meu cavalo e me aproximei dela, com uma espécie de respeito estranho imbuído em minhas veias toquei a pedra fria, e senti seu coração pulsante. Cerrei meus olhos. Em segundos que pareceram uma eternidade eu procurei o ar que me faltava. Eu era um cruzado. E despertei com o som de muitas cornetas anunciando a guerra.
            Ao meu lado uma torre se posicionava pronta para lançar sua ponte levadiça sobre a muralha. Godefroy e Baldwin entraram nesta torre, onde muitos soldados se comprimiam em poucos metros. Eu os segui, finalmente chegamos ao último pavimento, onde havia janelas estreitas. Eu suava, e todos ao meu redor também. Mas eu parecia ser o único tremendo de medo e receio.
            De súbito todo o exército se calou, o que me inquietou. Voltei meu olhar para Godefroy, e ele, com um gesto da cabeça, indicou-me a janela. Aproximei-me com muita dificuldade, mas finalmente pude ver que todos os homens estavam de joelhos, esperando a consagração e a benção dos clérigos, sob o cruzeiro de ouro.
            “Estão nos abençoando para a batalha...” - Eu disse, voltando-me para Godefroy.
            “Então, que Deus nos abençoe. E que tenha piedade de nós”. – Respondeu-me ao mesmo tempo em que colocava o elmo. Assim, enquanto observava com curiosidade a cerimônia sob o cruzeiro também vesti meu elmo desamassado, tentando controlar a respiração e parecer mais confiante do que era de fato.
            Amen. Os clérigos se curvaram e os homens se uniram em um clamor que fez as muralhas tremerem. Meu coração se sobressaltou enquanto uma saraivada de flechas cruzou o ar indo se chocar em telhados de cerâmica, palha e carne.
            Todas as torres se movimentaram com mais velocidade com exceção da nossa, os homens se enfileiravam para penetrar nelas, até agora a única forma de invadir a Cidade Santa, enquanto outros tentavam arrebentar os portões forjados usando troncos de palmeira, o que já sabíamos ser inútil.
            Ainda em silêncio, Godefroy fez o sinal da cruz, e finalmente deu ordens para baixar a ponte por onde conquistaríamos à cidade. Ao seu lado dois outros líderes, Tancred de Hauteville e Gaston de Beárn, sedentos, raivosos, acometidos pela febre da batalha. Eram altos, um tinha cabelos negros e a pele muito pálida, o outro tinha cabelos castanhos e a pele queimada pelo sol. Nos rostos a mesma expressão de prazer mesclada com obstinação. Eu não os compreendia, enquanto Godefroy e Baldwin pareciam adversos a esses sentimentos.
            A ponte baixava lentamente, enquanto os clamores sob nossos pés se erguiam mais e mais, à medida que as torres avançavam contra os contrafortes de Jerusalém.
            Voltei-me novamente para a pequena janela e pude ver que uma das torres, a que eu sabia ser comandada por Raymond de Toulouse, não podia mais avançar, estava barrada por uma vala. Enquanto isso outra explosão de gritos estourou. A Porta dos Peregrinos, mais ao sul, estava cedendo. Meu coração continuava trêmulo.
            A ponte chocou-se, finalmente, contra a pedra sarracena e inimiga. A muralha era nossa. Tancred, Gaston e seus homens marcharam rapidamente sobre a ponte, abateram violentamente os poucos sarracenos que tentavam defender-se, enquanto a Porta dos Peregrinos caía e uma horda de cruzados invadia as ruas da Cidade Santa ruidosamente. Godefroy, no entanto, ordenou aos gritos que sua tropa não avançasse. Não compreendemos a razão e permanecemos atônitos por alguns minutos, até que do interior da cidade milhares de vozes surgiram. Mas não eram vozes de cruzados. Não era o nosso exército falando. Eram os sarracenos. Homens, mulheres e crianças. Prantos. Dor, violência, e sangue. A Cidade Santa estava sendo manchada pelo exército da cruz de Cristo.
            “Atenção! De volta para as tendas. Para as tendas! A batalha terminou. E não vamos participar deste festim”.
Godefroy ordenara que os seus exércitos retornassem para o acampamento sem derramar uma gota de sangue. Em silêncio, marchamos de volta para as tendas, enquanto alguns poucos faziam o mesmo, seguindo nosso exemplo e a voz vacilante de seus corações.
A distância não nos deixou de escutar a violenta invasão de Jerusalém, e os relatos que recebemos dos outros cruzados não eram necessários, pois imaginávamos exatamente o que estava acontecendo sobre a cidade sagrada.
Até mesmo as montanhas de corpos de judeus, sarracenos e até mesmos cristãos do oriente que os poucos sobreviventes levantaram, depois do banho de sangue, pareceram familiares, pois já sabíamos que tudo terminaria assim tão logo a matança se iniciou dentro da Cidade Sagrada. 70.000 mortos. E poucos, ou nenhum, cruzados entre eles.
            Soubemos depois que os sarracenos se reuniram em seus templos, unindo-se frente à morte, ou esperando alguma clemência. Disseram que Tancred e Gaston protegeram alguns deles, mas, depois, ordenaram seu massacre. O sangue atingiu o tornozelo dos homens e cobriu algumas ruas e as próprias mesquitas como um tapete. Crueldade e violência foram os principais exércitos vencedores nesta batalha. O cheiro de sangue podre era insuportável.
            Os judeus se reuniram em sua sinagoga e também não foram poupados. Atearam fogo ao teto da sinagoga enquanto entoavam louvores a Deus. Seria realmente esta uma vitória dEle?
            A Torre de Davi, a fortaleza de Jerusalém, foi o único lugar que não conseguiram macular. O governante sarraceno havia se refugiado ali, e conseguira pagar por sua fuga para Ascalon. Raymond de Toulouse foi o grande conquistador da fortaleza. O cruzeiro foi levado para a Gólgota, enquanto os clérigos maravilhados cruzavam rios de sangue. Sangue humano.
Cristo havia sangrado pela Via Crucis. Agora era a vez de Jerusalém sangrar por Ele.
            No entanto havia uma última conquista em Jerusalém, esta muito mais simbólica e sagrada. Jerusalém, a cidade, foi tomada por armas e morte. A Cidade de Cristo seria tomada de outra forma. A verdade é que Godefroy, Baldwin, alguns de nossos homens e eu despimos as vestes de batalha, deixando de lado toda a mácula que representavam as armaduras e malhas. Vestimos nossas simples túnicas de lã, e, descalços, nos dirigimos à torre em que estivemos havia pouco tempo. Estava completamente vazia com exceção de uma pequena sarracena e seu irmão menor. Mortos, violentamente mortos com diversos cortes transpassados por seus corpos magros machados pela dor e pelo medo. Não havia piedade nos corações cristãos. Seria isso realmente necessário? Eu já havia visto coisas horríveis na Terra Santa, mas aquela imagem jamais saiu de minha memória. Por fim, do alto das muralhas, incendiamos a torre. Um cortejo fúnebre para os pequenos anjos sarracenos.
            Deixamos o incêndio para trás, seguindo por sobre a muralha, tão vazia de vivos e tão cheia de mortos. Poças de sangue, como poças de chuva. A muralha também havia sido lavada de seus pecados.
            Rumamos em silêncio, tentando não nos afetar pela morte ao nosso redor. Aquele entardecer foi suficiente.
Não havia um sarraceno vivo em nosso caminho. Não havia qualquer pessoa para nos fazer frente. Estavam todos mortos, e aqueles que estavam vivos dificilmente sobreviveriam até a próxima manhã. A Cidade Santa era cristã. Ao menos isto nos servia de consolo.
Por fim, depois de muito andar entre as vielas e ruas de Jerusalém, ainda que desconcertados e sem saber ao certo o caminho, chegamos ao lugar mais calmo de Jerusalém, onde não havia ninguém, ninguém. Vivo ou morto. Sabíamos que aquele era o Getsêmani, e finalmente, foi impossível não chorar. E choramos. Lavamos com lágrimas o sangue que derramaram sobre a Cidade Santa. Nossas mãos unidas em oração agradeciam a vitória. E pediam perdão pela perdição de nossas almas. Jerusalém era nossa. Sem saber, e de joelhos, consagramos a Cidade Santa, a pedra mais preciosa da Terra Santa, para nós. 

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